Intermitências do isolamento

Por instantes, o Mianmar abriu-se ao mundo. 

Foi quando o visitámos. Na pausa do cativeiro e sofrimento impostos pelas diversas forças que o foram dominando.

À época, os turistas eram menos do que em alguns dos países vizinhos, e pareciam usar uma rosa dos ventos mal desenhada para perseguirem as imagens exóticas que semearam a vontade de o visitar. 

Entrámos por Mandalai. Fomos atraídos pelas margens do rio onde monges budistas contemplavam o tempo a passar, agricultores aravam a terra com técnicas milenares, e as crianças brincavam enquanto o sol se punha. Daí em diante, conheceria o  Mianmar como o país do sol-poente.



Apanhámos um barco para visitar o lado de lá da margem. Desembarcámos junto a leões de pedra, sentinelas seculares dos pagodes. Estavam em ruínas, tal como o Mingun Pahtodawgyi que guardavam. Da obra monumental que se pretendia ter 150 metros de altura, resta a base cicatrizada por um sismo.  Os custos humanos e financeiros, aliados à profecia de que a sua conclusão representaria o fim do reino, ditaram o destino de pagode inacabado.

 

Recorremos ao serviço de dois jovens para nos guiarem pelos arredores. Um condutor e um falador. Quando nos separámos percebemos que as gorjetas se queriam fartas, despudoradamente fartas! A recusa em ofertarmos além do que considerámos justo foi mal recebida. Talvez antecipassem que esta fonte de rendimento seria fugaz. Numa economia frágil e pouco modernizada, fruto de anos de conflitos e isolamento, o turismo trazia consigo o muito necessário alento financeiro para viver acima da miséria.

Foi em Bagan que sentimos mais o efeito da oferta-procura nos preços praticados, com a diferença que ali se tratava de serviço premium e qualificado. Como só se visita o Mianmar uma vez, decidimos ver as vistas por cima e pulámos para uma cesta de balão. O piloto era ocidental e ao longo do ano fazia o circuito do grand slam do balonismo: Cappadocia, a Grande Migração e, claro, Bagan. Dizia ter um gosto especial pelo percurso africano (e assim se criam novos desejos...). Foi uma experiência engraçada. Além dos pagodes, do alto também se perspectiva um pouco mais do quotidiano dos birmaneses sem se ser demasiado intrusivo. 



Mas Bagan ganha beleza ao perto. Seja por bicicleta ou com recurso a motoretas eléctricas que pesam como chumbo e são pouco fiáveis, é no terreno que se conhece a área.





Seguimos viagem para o Lago Inle. Uma extensa massa de água com mais de 100km2, onde cabe o sentido de comunidade e bondade para com estranhos. Nas colinas que o rodeiam vislumbrámos uma biblioteca pública e banhos comunitários acessíveis a quem trouxer o seu sabonete - ambos ao ar livre. Testemunhámos a azáfama da saída das escolas, com a bicicleta a fazer tanto parte do uniforme como as vestes que cobriam os alunos. Alguns morariam nas colinas, outros nas aldeias contruídas sobre água.


Marcámos a excursão pelo lago no pequeno hotel em que estávamos hospedados. Logo nos foi indicado com gentileza que deveríamos levar connosco notas de $US de baixo valor, para irmos distribuindo pelos outrora pescadores, que tinham encontrado nas poses para a fotografia um modo mais rentável de subsistência. Ao contrário da situação dos arredores de Mandalai, encarámos esta gratificação como natural e razoável. Por poucos que fossem os turistas, com certeza acumulariam no final do dia de trabalho um rendimento bem superior à média do país.
Partimos ao amanhecer rumo ao horizonte, num dos momentos mais belos das minhas viagens. Não tivemos de esperar muito até encontrarmos os afamados pescadores, que nos brindaram com as poses que foram desenvolvendo ao longo dos anos.



Com a chegada ao mercado foi fácil de perceber como era o centro da vida do lago, tantos eram os barcos atracados. A larga maioria dos locais preferia resguardar-se do contacto com os turistas, a não ser que os estrangeiros fossem ter directamente com eles para fazer negócio. Uma postura muito diferente de outros locais na Ásia. Nas aldeias flutuantes promovia-se o comércio justo de acessórios de vestuário, com todo o ciclo de produção concentrado no mesmo local. 



Foi também por esta altura que se começou a instalar a "pagode-fatigue". Há um limite para a quantidade de pagodes que se consegue achar interessantes - só visitaríamos mais um, em Rangun.

 
Para o final do dia, estava reservado mais um daqueles momentos que se gravam na memória.


Fizemos um desvio por Ngapali antes do destino final de Rangun. A praia era em quase tudo semelhante a muitas outras do Sudoeste Asiático, excepto na moldura de turistas e no entretenimento típico que os segue. Só ao entardecer se enchia de locais a carregarem pneus para usarem como bóias, ou se juntavam em grandes rodas de convívio. O riso do presente fazia adivinhar a esperança num futuro melhor.

Foi breve. 


 




 






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