Yalla Yalla Habibi

 


Em retrospectiva, sou da opinião que nas fronteiras do Egipto deveria existir um sinal ao estilo “Divina Comédia” - Vós que entrais, abandonai o apreço pelas convenções. 

Fomos apresentados a alguns dos costumes egípcios na noite da chegada. O ziguezaguear do trajecto entre o aeroporto e Gizé revelou de imediato a pouca estima pelas normas. A velocidade excessiva, o motorista contornou utentes que subiam e desciam de mini autocarros sobrelotados em plena via, relíquias de quatro rodas atoladas com o que fosse, automóveis, motas, bicicletas, carroças, peões … todos a moverem-se em direcções normalmente indisponíveis. Um caos como nunca tinha visto. E sem um cinto de segurança funcional.

Na mesma noite, refastelados no terraço do hotel com as grandes pirâmides em pano de fundo, rimo-nos enquanto um italiano bem-disposto nos confidenciava que era a favor de regras mais flexíveis, mas que ao deparar-se com o trânsito desregrado do grande Cairo percebia a sua utilidade.

Pela manhã, levantámos um pouco mais do véu sobre o Egipto dos tempos modernos. Inacabado, exposto, colapsado. Há zonas em Gizé e no Cairo que parecem ter sofrido uma catástrofe natural recente ou ter sido alvo de ataques militares. Reflectem o desejo de fugir aos impostos cobrados quando se conclui uma obra, a vontade de contornar leis que visariam protegeriam as edificações contra a demolição, a fraca qualidade da construção ou o desmazelo. Enquanto deambulávamos pelas cidades era comum depararmo-nos com ruínas a escassos metros de marcos turísticos. São os lados B e A de um país que aparenta ser pouco dado a equilíbrios e onde se prefere investir em mega-empreendimentos a cuidar do que existe.



À passagem dos múltiplos postos de controlo dos aeroportos encena-se a arte corriqueira de angariação de fundos próprios. Mediante o actor com que se contracena, ora se colocam os pertences num tapete rolante, ora se entrega o passaporte. Inicia-se o guião-ioiô. «Where you’re from?» «Portugal». «Ronaldo». «Mo Salah» e um sorriso. Fosse munida do superpoder de legendar pensamentos através de expressões faciais e leria: Passa lá. Angario com o próximo. Benditos astros futebolísticos!

Eram os próprios seguranças dos sítios arqueológicos quem indicava os melhores locais para tirar fotografias, desconsiderando se esse local colocaria em causa a preservação dos vestígios que deveriam proteger. Tudo em nome do dólar.

Das abordagens que nos fizeram a mais diferenciada foi às portas do bazar de Khan el Khalili: «How can I take your money?». Não levou dinheiro, mas conseguiu uma gargalhada tão honesta como a pergunta. Por divertido que tenha sido o momento, este azucrinar mói. Pregam-se quinquilharias, negoceiam-se gorjetas ou cobram-se à tabela, escondem-se custos nos serviços contratados, esperam-se recompensas generosas por pequenos gestos. A paciência dos viajantes sofre. A reputação do Egipto como destino turístico também.

Durante o cruzeiro pelo Nilo vários passageiros mostraram o seu desencanto e desconforto quando confrontados com uma realidade menos agradável do que a que tinha sido vendida e (pior) imaginada. Do nosso lado, tínhamo-nos desprendido de grandes expectativas na véspera do embarque, o que permitiu retirar maior prazer daqueles dias. Apercebemo-nos que iriam existir contrariedades quando recusaram ir buscar-nos ao hotel. Estávamos na margem errada do rio. O recepcionista propôs duas alternativas: ir de carro ou navegar. Partimos da aldeia Núbia para Assuão pouco depois do amanhecer. Três pessoas num barco, e o Nilo a despertar.


Perante um roteiro condensado, alertaram-nos sem demora para a intensidade dos dias que se seguiriam. Dias que se esticaram com as (estrategicamente ausentes do itinerário) chamadas pré-alvorada para reunir as tropas e as típicas paragens impostas a perfumarias, lojas de chá e oficinas de alabastro, às quais se dedicava o mesmo tempo que à visita dos monumentos classificados pela UNESCO.

Yalla Yalla Habibi «Apressem-se, meus queridos». A passo rápido percorríamos os templos enquanto o guia nos fazia encarnar personagens míticos ou imortalizados nos cartuchos, para nos ajudar a interpretar a beleza hipnotizante que se encontrava perante os nossos olhos. O retrato duma civilização em que o divino, a ciência e a mestria abundavam. Nem os especialistas da grande campanha para salvar os monumentos núbios conseguiram replicar alguns dos seus feitos, quando resgataram o complexo de Abu Simbel da área que seria inundada pela criação do lago Nasser.



Tendo o cruzeiro como base percorremos alguns dos mais reconhecíveis vestígios do Antigo Egipto: os templos de Philae, Abu Simbel, Kom Ombo, Edfu, Karnak e Luxor. Mesmo com os níveis de energia impactados pela privação de sono e pelo calor intenso, havia sempre espaço para o deslumbre.




Fechámos o périplo com os túmulos do Vale dos Reis e o templo de Hatshepsut, num redobrado fascínio pelo que nos foi deixado. Imaginem criar isto à luz duma candeia:






Tínhamos reservado a aridez do planato de Gizé e as entranhas da pirâmide de Quéops para o início da viagem. Por fruto do acaso, acabámos por estender a visita às pirâmides de degraus, em Saqqara, e às curvada e vermelha, em Dahchur. Entre a azáfama de turistas e guias ouviam-se línguas mais e menos familiares, com os egípcios a revelarem uma excelente capacidade para comunicarem na língua de origem de quem os contratava.


Palmilhámos o Grande Museu Egípcio, em modo megalómano e de pré-abertura, e o Museu Egípcio do Cairo, em modo cuidados paliativos. Apreciámos com o tempo necessário a perfeição da máscara funerária de Tutancámon, acompanhados pelos gritos dos seguranças para que não se tirassem fotografias – um esforço inglório face à quantidade de turistas desrespeitosos e a quem era mandatado que apagassem a prova da infracção. Atravessámos ruas de múltiplas faixas no Cairo e em Gizé como autóctones, devagar e confiantes que nos contornariam. Provámos iguarias típicas. Tentámos absorver a cultura local.

Visitar o Egipto era um sonho de infância, daqueles que se alojam na derme e fazem comichão. E a pele tem memória. A cada novo documentário, filme ou série, a vontade ressurgia para logo ser contrariada por determinado motivo. Tardei a cumprir o sonho, mas agora posso recordar o Egipto despojada de encantamentos infantis, como um país desafiante que tem um património único para oferecer. 



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