De cor e calor

Há uma Goa que insiste em resistir à passagem do tempo, onde o virar de cada esquina leva a um encontro com o passado. Nem todas as Goas são assim, mas é sobre esta que quero escrever.


O bairro das Fontaínhas, juntamente com os bairros de São Tomé e Altinho, em Panjim, mantêm a traça portuguesa nas casas, mantêm os Pereira, os Couto, os Fonseca, os Fernandes, os Noronha, e sim, os Mateus. A pacatez e o calor que se faziam sentir transportaram-me no tempo e no espaço, para os verões de infância na aldeia da minha avó. As habitações ladeadas por flores, levaram-me à porta da sua casa.    



Como se de uma tela se tratasse, cresceu a vontade de pintar os espaços em branco e de saber mais sobre a História do pequeno Estado Indiano. Inscrevemo-nos num passeio guiado pela Panjim antiga na esperança de nos ser revelada a perspectiva popular Indiana (menos moldada do que a política) sobre a presença portuguesa no território. Dar azo ao contraditório. O guia desperdiçou a oportunidade e à excepção da expressão “Libertação de Goa, em 1961”, mais nada houve que intuísse uma posição em relação aos 450 anos de domínio Lusitano. 

Embora as distância em Goa sejam relativamente curtas, demora-se tempo a percorrê-las. E quem se esquece da carta de condução fica sujeito aos transportes públicos, que podem ser mais ou menos fiáveis. Convencidos de que existiriam tuk tuks ou táxis nas principais atracções turísticas, acordámos apenas a viagem de ida até à Velha Goa. Eis como ficar apeado. Pelo menos até um autocarro público surgir mesmo à nossa frente e um senhor nos dizer para embarcar. Confirmámos o destino e lá fomos aos pulos até Panjim. Um desfecho muito mais simpático do que percorrer os 9km a pé. 




Foi com outro condutor de tuk tuk que tivemos a primeira troca oral em português. Fechou as portas do veículo e sacou dum perfeito “Vamos!”. O segundo contacto deu-se enquanto caminhávamos pelo bairro latino e fomos interpelados por uma voz masculina: “Desculpem, são portugueses? Permitam-me que vos convide para um refresco”. Acabáramos de travar conhecimento com o Sr. Sélvio, com quem nos voltaríamos a encontrar nos restantes dias da nossa viagem. Transmitiu-nos o apêgo a esse país que deixou de ser o seu há quase 60 anos e a mágoa perante descendentes Goeses em Portugal quererem permanecer ignorantes das suas raízes. Duma generosidade sem limites, ofereceu-nos de bebinca a cajus torrados, e ainda nos queria emprestar o seu carro. Aquece o peito encontrar pessoas assim.

Nesta viagem pelo passado-presente dirigimo-nos ao Café Caravela com a ideia de comermos um almoço leve. Ideia que logo se apagou quando lemos feijoada e roulade na ementa. Gulosos! É importante relembrar que não temos iguarias destas sempre ao dispor. Quando os pratos chegaram e expressámos o nosso entusiasmo com o aroma da comida, o Sr. Carlos resolveu revelar-se e juntou-se à conversa num português fluído. Contou-nos da existência duma missa dominical ainda conduzida na língua de Camões. Mostrou-nos um livro de esquissos com sugestões de rotas pedonais pela cidade, impresso pela sua casa, e que viria a servir-nos de mapa. Noutra ocasião, ofereceu-nos um almanaque de recordação e sacos de café. Repito, generosidade abnegada. E a comida? A comida sabia tão bem como cheirava. 

Vai havendo uma Goa que teima em resistir à passagem do tempo, mas que não conseguirá subsistir muito mais. Uma alma miscigenada que será esquecida quando os mais velhos perecerem e os costumes derem lugar a novos costumes. De mudança é feito o mundo, de cor e calor é feita Goa.






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