Fast forward no tempo

Entrei em 2049 com o Hato (Pombo do céu). A intensidade do tufão levou a que se lhe mudasse postumamente o nome para Yamaneko (Gato bravo). Deixou um rasto de destruição, com mortos a lamentar, milhões de patacas em prejuízos, cortes de água e luz por vários dias. Durante o Hato, milhares de pessoas mantiveram-se nos locais de trabalho em turnos duplos para salvaguardar condições de vivência e zelar por propriedade alheia. Várias entidades patronais agradeceram os esforços de todos nos momentos complicados que se viveram, e a empresa para que trabalhava não foi excepção. O agradecimento foi feito quase na totalidade em chinês tradicional e simplificado. Mesmo os vídeos foram mostrados sem legendas. Numa organização com cerca de sessenta nacionalidades, na altura, e onde a língua veicular é o inglês, as palavras não foram entendidas por boa parte da audiência. Já a mensagem não escapou, nem aos trabalhadores não-chineses, nem aos Governos local e central a quem visava agradar. Em simultâneo, implementavam-se quotas para não-residentes em funções de chefia, com vários trabalhadores competentes a verem anulados os seus vistos de trabalho para virem a ser substituídos por pessoas impreparadas, numa manobra admnistrativa. À cautela, afastaram-se juízes portugueses dos seus cargos, não fossem eles causar celeumas a medidas governamentais contrárias à Lei.

Com a pandemia chegou a oportunidade ideal para fechar hermeticamente a China e as suas regiões "autónomas", e abafar vozes que possam ser dissonantes. Exceptuando um par de casos de Covid-19 detectados na chegada ao Território, desde Agosto de 2020 que não se registam novos casos em Macau. Mas serve de pretexto para que se proíbam manifestações consideradas de cariz politico, como a vigília anual do massacre de Tiananmen ou, mais recentemente, a manifestação contra o funcionamento dos apoios ao consumo e à economia. Pessoas com vistos legais de trabalho, que não sejam de nacionalidade Chinesa, estão proíbidas de entrar em Macau há mais de um ano. É de lembrar que os residentes o podem fazer mediante quarentena obrigatória de 21 dias, e as pessoas da China Continental estão isentas. Os não-residentes, que perderam os seus postos de trabalho e permanecem na Região, não têm como sair. 

Entretanto, a exposição do World Press Photo encerrou meros dias depois de ser inaugurada. O motivo oficial foi a falta de financiamento. O mencionado em alguns jornais foi a eventual pressão do Governo, porque expunha fotografias dos grandes protestos do ano anterior em Hong Kong, contra a Lei de Segurança Nacional. É esta a Região Administrativa Especial que tem sido alvo das medidas mais coercivas por parte do Governo central, com vários activistas a serem presos. Também o festival literário Rota das Letras sofreu pressões, e viu-se obrigado a cancelar a presença "pouco oportuna" de autores que haviam sido convidados para o certame. Macau depara-se agora com a ameaça pouco velada de despedimento por justa causa, caso os jornalistas da televisão e rádio públicas se dignem a fazer o seu trabalho e não sirvam como agentes de propaganda dos valores patrióticos.

E não, Macau não é apenas um pedaço de terra longínquo que não nos diz respeito. Embora esteja em vigência o período transitório entre Portugal e China proclamado no slogan "Um país, dois sistemas", que supostamente termina em 2049, a Lei Básica que o defende está a ser atropelada sem pudor. Restringem-se liberdades, direitos e garantias cada vez com maior frequência. Acontece que, independentemente da nacionalidade, as pessoas merecem contar com uma lei que as protege, que não discrimina, nem amordaça.




Infelizmente Macau fez fast forward no tempo e está em 2049. Temo pensar o que acontecerá quando chegar 2050.

Comentários